O Auto da Barca do Inferno

  
O Onzeneiro (página 125)

1.1. O Diabo trata o Onzeneiro como "seu parente" (verso 183) porque são ambos parecidos (na medida em que não praticam o bem) e porque o ajudou, em vida, a enganar as pessoas à sua volta. 1.2. A morte apanhou o Onzeneiro de surpresa, por isso não lhe deixaram uma moeda para o barqueiro: "Solamente pera o barqueiro / nom me leixaram tanto" (versos 190/191)1.3. Caronte é um barqueiro com a tarefa de levar as almas dos defuntos através dos pântanos de Aquerontes para a outra margem do rio dos mortos. Em troca, os passageiros deveriam oferecer-lhe uma moeda. Foi desse mito que surgiu o costume de pôr uma moeda na boca ou no corpo dos mortos. Nos versos 190 e 191, o Onzeneiro lamenta não lhe terem deixado no corpo nenhuma moeda para pagar pelo seu lugar na barca. 1.4. "meu parente" (verso 183); "Como tardastes vós tanto?" (verso 184); "Oh! que gentil recear, / e que cousas pera mi!" (verso 194/195).
2.1. É recusada ao Onzeneiro a entrada na Barca da Glória porque o seu bolsão ocuparia demasiado espaço no navio. O Onzeneiro interpreta isto como uma afirmação de que o bolsão vem demasiado cheio de ouro e jura que ele está vazio, mas o que o Anjo quer dizer é que ele vem cheio de pecados, ambição e cobiça ("Não já no teu coração", verso 219). 2.2. Em sua defesa, o Onzeneiro afirma que o bolsão vai vazio: "Juro a Deos que vai vazio" (verso 118).
3.1. O Onzeneiro quer voltar à Terra para trazer dinheiro para pagar ao Anjo um lugar na Barca do Paraíso (ver versos 226 a 231). 3.2. Este seu desejo demonstra que ele é ignorante.
4.1. A interrogação que o Onzeneiro faz ao Fidalgo expressa a sua surpresa em encontrá-lo, que é de uma classe social tão superior, na Barca Infernal. 4.2. A reacção intempestiva do Fidalgo pode ser explicada de 2 maneiras: 1) porque o Onzeneiro já teria emprestado dinheiro ao Fidalgo e este não ficara satisfeito com os juros altíssimos que lhe teve de pagar e/ou 2) porque o Fidalgo se sente envergonhado por estar e ser visto na Barca do Inferno quando ele é uma pessoa tão importante.

Joane, o Parvo (página 129)

1.1. Quando se apresenta ao Diabo, responde-lhe que ele é ele e insinua que é um tolo. Ao Anjo, diz que talvez seja alguém. Estas formas de apresentação permitem-nos concluir que ele é humilde, inocente e dá pouca importância a si próprio. 1.2. Símbolos cénicos: Ao contrário das outras personagens, Joane não trás bagagem consigo, por isso, ao contrário dos outros, não vem carregado com as suas falsidades e pecados. Percurso cénico: Contrariamente às personagens anteriores, Joane não regressa à Barca do Inferno depois de ir à Barca do Paraíso. Argumentos de defesa: As personagens anteriores tiveram que tentar defender-se, mas Joane, por ser humilde e não ter "culpas no cartório", não tem que o fazer.
2. Quando o Diabo convida Joane para entrar na sua barca, este insulta-o.
3.1. O Anjo diz-lhe que ele pode entrar mas pede-lhe que espere que venha alguém digno de entrar com ele. 3.2. É permitida a entrada de Joane porque ele, contrariamente às outras personagens, não fez o que fez em vida por maldade. Os seus actos devem-se apenas à sua ingenuidade, logo não é responsável por eles.
4.1. Parece-me que Joane, no resto da obra, vai ridicularizar as personagens e desempenhar o papel de acusador.

O Sapateiro (página 133)

1. Na primeira fala do Diabo está presente a ironia.
2. As sucessivas interrogações do Sapateiro mostram a sua ignorância, mas principalmente surpresa em ser mandado entrar na barca que seguia para o Inferno depois de ter sido tão devoto a Deus em vida.
3. O Sapateiro apresenta uma série de razões para se salvar da barca infernal: "Como poderá isso ser, / confessado e comungado?" (versos 320/321); "Quantas missa eu ouvi, / nom me hão elas de prestar?" (versos 333/334); "E as ofertas, que darão? / E as horas dos finados?" (versos 336/337).
4. A lição que Gil Vicente queria transmitir com este diálogo era que não chega ser devoto a Deus (ir a missas e rezar) para ser salvo: é preciso, também, ter boa conduta e agir de forma justa e bondosa. E o Sapateiro não era assim.
5. O uso das expressões de calão por parte do Sapateiro devem-se à sua classe social baixa (ele pertence ao povo) e servem para fazer rir (não esquecer que Gil Vicente diz que ridendo castigat mores).
6. O Sapateiro interpreta no sentido denotativo, ou seja, pensa que a carga a que o Anjo e o Diabo se referem é composta pelas formas que traz na mão. Na verdade, o Anjo e o Diabo estão a usar o sentido conotativo, ou seja, a carga que ele traz é composta pelos seus pecados.

O Frade (página 133)

1. O Frade é um cortesão: "Som cortesão" (verso 372); "Pois, entrai! Eu tangerei / e faremos um serão" (versos 375/376) porque os serões são típicos dos cortesãos; "uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e com um casco" (didascália, início da cena do Frade); "Começou o Frade a dar uma lição d'esgrima" (didascália pouco antes do verso 425).
2. No verso 383, está implícita uma crítica aos membros do clero por desrespeitarem os seus votos. Comportam-se como cortesãos e não como clérigos, à semelhança deste Frade.
3. O Frade refere-se ao contrato de ingresso no convento, que lhe garantia um lugar no Paraíso.
4. O cómico presente nos versos em que o Frade ensina o Diabo técnicas de esgrima é de situação.
5. O Anjo fica silencioso porque o Frade pecou tanto que já nem merece ouvir a resposta do Anjo ao seu pedido para entrar na Barca da Glória. O Parvo intervém porque a sua função é ridicularizar as personagens.
6. O Paje do Fidalgo é, no fundo, uma vítima. A Moça desta cena acompanha o Frade para a barca infernal porque também ela pecou ao dormir com ele sabendo que ele era um Frade.

Brísida Vaz, a Alcoviteira (página 141)

2. Brísida Vaz está convencida da sua salvação porque se considera como um apóstolo, pois salvou e converteu muitas moças, e uma mártir, de tantos açoites que levou.
3. A linguagem usada pela Alcoviteira quando se dirige ao Anjo tem por objectivo convencê-lo a deixá-la entrar na Barca da Glória.
4. O grupo social criticado nos versos 525 e 526 é o clero.
5. Converter: ensinar às meninas a profissão. Salvar: salvar da pobreza. Perder: desviar da profissão (nenhuma o fez).

O Judeu (página 144)

1. Em troca do embarque no batel do Inferno, o Judeu oferece dinheiro ao Diabo.
2. O Judeu recusa-se a embarcar sem o bode porque este é o símbolo da sua religião.
3. O Parvo desempenha, nesta cena, o papel de acusador, pois acusa o Judeu de profanar as campas e comer carne no dia do Senhor.
4. O Diabo aceita o Judeu mas manda-o ir a reboque porque o acha inferior a todas as outras personagens. Excluído da sociedade, o Judeu contínua a ser inferiorizado mesmo depois de morto.
5. O Judeu nem se aproxima da Barca da Glória porque a sua religião não é a cristã e ele sabe que é inútil apelar ao Anjo que o deixe embarcar.